Há dias, a notícia de que o Tribunal Constitucional decidira chumbar a proposta aprovada na Assembleia da República para a realização de um referendo à co-adopção de crianças por pessoas do mesmo sexo despertou-me a curiosidade e fui investigar a jurisprudência produzida por este órgão de soberania no que se refere à apreciação da conformidade com as normas da Constituição da legislação, em sentido amplo, incluindo propostas de diplomas, produzidos e aprovados por este governo e/ou pela maioria parlamentar que o apoia.
Contei àquela data dez declarações de inconstitucionalidade – ou chumbos, como por hábito se afirma na comunicação social –, número que depois tive oportunidade de confirmar em várias notícias, na certa saídas do computador de alguém que se dera ao mesmo trabalho de contagem.
Hoje aquelas declarações são já 11.
Em número de meses, este governo leva trinta e dois.
Ora 11 chumbos em 32 meses é situação a que ninguém que se tenha por democrata pode ficar indiferente.
Sobretudo quando vários desses mesmos chumbos se registaram com recorrência em leis de valor reforçado, como é o caso das que aprovam os Orçamentos do Estado, e quando a desconformidade com a Constituição se localiza ao nível de direitos fundamentais, como sejam os que emanam dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da confiança.
É reconhecível pelas declarações de alguns membros do governo e de deputados da coligação serem desconhecedores das normas constitucionais, pelo que o seu voto se terá ficado a dever a obediência às orientações (não queremos ser duros ao ponto de usar a palavra “ordens”) saídas das direcções parlamentares dos respectivos partidos.
Aliás, e para fazer jus à verdade, há que dizer que esta é, infelizmente, uma realidade que não se verifica unicamente nesta maioria parlamentar, nem apenas nos anos que vamos vivendo, embora haja ainda que reconhecer, com igual rigor de verdade, que a situação tem vindo a ser alvo de acelerada degradação.
Esta ponderação da actividade legisferante reiteradamente rejeitada pelo Tribunal Constitucional foi depois acicatada pelas declarações proferidas no início da 11.a avaliação realizada por aquela entidade a que chamam troika, que se nos impôs sem que nos haja sido dado a conhecer quais as normas de natureza supranacionais que a sustentam.
Segundo as aludidas declarações, a troika quer agora que o governo português faça o que já se temia: que as medidas de diminuição da despesa de natureza temporária que se traduziram em cortes de salários e de pensões, sejam convertidas em definitivas.
E, como também já se adivinhava, perante uma imposição destas, o governo estará já a procurar o modo de lhe dar cumprimento, preparando-se, pois, para tentar tornar permanentes os cortes que os portugueses entendiam como excepcionais e transitórios.
A este propósito convém recordar que as normas sobre salários e pensões que o governo conseguiu transmitir pelo crivo do Tribunal Constitucional só foram aceites por este, em virtude, precisamente, do reconhecimento da sua natureza transitória.
E a minha reflexão orientou-se então para um diploma vigente (ainda) no nosso ordenamento jurídico a que, como diria o povo, é dado muito pouco uso (ou quase nenhum, acrescentamos nós).
Referimo-nos à lei que trata da responsabilidade penal dos titulares de cargos políticos, contida na Lei n.o 34/87, de 16 de Julho, sucessivamente alterada até 2013.
Desta lei releva, para dar resposta à questão que escolhi para intitular esta breve reflexão, o artigo 9.o, cujo teor, pela importância que assume, se reproduz: “O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver conseguido.”
Ultrapassada que foi a dezena dos acórdãos do Tribunal Constitucional que rejeitaram documentos legislativos do governo e/ou da maioria da Assembleia da República que o sustenta, é tempo de averiguar se esta conduta dos nossos governantes não preencherá o tipo de CRIME (continuado) contra o Estado de Direito que acima ficou expresso.
Os portugueses preparam-se para dentro de menos de dois meses celebrar quatro décadas de vivência em Estado de direito, que foi alcançado à custa de orgulhosa luta contra a ditadura.
Tenho para mim que, se não forem tomadas medidas atempadas para defesa do que nos resta desse Estado de direito, em 2015 boa parte dele terá sido eliminada quando celebrarmos o quadragésimo primeiro 25 de Abril.
ADVOGADA
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